terça-feira, 16 de abril de 2013

Naturalíssimo


Pela janela do carro o menino podia ver a cidade lá fora. Não "ver", somente "ver", como a maioria das faz. Ele conseguia enxergá-la e analisá-la, não só ela, mas os seus habitantes, também. No final, percebeu que os humanos são meros animais, que escondendo-se sob o véu de uma suposta inteligência superior, justificam sua dominação sobre as demais espécies.

Os prédios e casas? Tocas. Os beijos de um casal apaixonado? Rituais de acasalamento. Restaurantes e bares? Ora, todo animal precisa beber e alimentar-se. Sobrava até para os mendigos: elementos excluídos pelo processo de seleção natural. O interessante é que ele próprio se via como um animal. Às vezes, num rompante naturalista, tocava o focinho, os pêlos, coçava o casco. Nada mais natural, nada mais normal.

O diacho é que ele enfiou na cabeça que quanto mais a humanidade se tornava "humana", mais se afastava do seu caráter essencial. Bom mesmo serial voltar à animalidade primeira. Sem essa história de emprego, vestibular, dinheiro, biocombustíveis ou créditos de carbono.

Chegou a formular teorias: as guerras e conflitos, por exemplo, eram meras disputas ecológicas, quando realizadas por conta de territórios. Fosse o homem mais animal, menso mortes aconteceriam e a população mundial estaria em equilíbrio. Já as guerras por conta de riquezas seriam geradas pela ganância humana, resultado do afastamento do Homo sapiens sapiens de sua condição animal. Animais não possuiam ambição, pois.

Para não dizerem que era um revolucionário acomodado, decidiu que seria o primeiro a dar o exemplo. A partir daquele dia, só comeria carne crua. Animais não usam fogo. Só iria andar nu. Animais não usam roupas. Não iria mais sequer atender ao telefone. Animais não sabem nem pra que servem essas coisas. A mão se desesperou. Chorava dias e noites, acendeu vela para Nossa Sra. de Fátima, tentava dissuadir o filho da idéia, mas este mantinhase irredutível. O pai desconversou, disse que era coisa da idade, mesmo, ele próprio já tinha tido suas loucuras, seus acessos comunistas. Como a tal "rebeldia" não passasse, ao cabo de duas semanas ameaçou bater, ameaçou internar, ameaçou botar pra fora de casa. O filho disse que botasse, faria sua toca lá pro lado da Ponta D'Areia. A avó ligou de Brasília com o contato de um psicólogo famoso. Foi o menino ao psicólogo.

A primeira consulta foi tranquila. O pequeno expôs suas teorias, suas crenças, defendeu seu ideal. Coisa mais linda de se ver. Tão eloquente era, faria qualquer um despir-se naquele exato momento e sair pela rua caçando o alimento. O médico olhou bem para o garoto e concordou: "Você está mais do que certo. Finalmente entendeu a verdadeira essência humana, coisa que a maioria se recusa a fazer". O garoto ficou atônito, não estava acostumado a ter seguidores. O médico continuou "Ora, os castores constroem pontes, os passarinhos fazem ninhos, as aranhas tecem teias e os gambás constroem longos túneis. O homem também é um animal, logo todas as suas construções não são artificiais, são naturais. Um arranha-céu é tão natural quanto uma colméia. Uma cama é tão natural quanto uma teia de aranha e um viaduto é tão natural quanto um túnel de minhoca, pois! Porque negar as construções de tua espécie, bichinho?". O garoto se convenceu. Achara um mais louco que ele...

O garoto se chamava Joaquim. Casou-se, teve dois filhos e é funcionário do Banco do Brasil. Ainda come carne crua - quando vai a um restarante japonês -, e às vezes olha com saudade p'raquela selva de metal, com seus cipós de fio de energia elétrica, suas tocas de edifícios, suas árvores de postes de luz. Joaquim não era doido, não, nem precisou de remédios. Vai entender o que aconteceu... "Maldito Rousseau", ainda ontem a mãe xingava.